MULHERES, BORBOLETAS SEM CRISÁLIDAS
Thelma Regina Siqueira Linhares
Borboletas sem crisálidas bem que pode ser considerada a imagem
simbólica da situação feminina nesse século XX, recém-findo, seja no contexto
mundial, seja no Brasil, especificamente.
Vinda de uma situação histórica e milenar de submissão e exploração pelo
sistema machista, foi, no século passado, que a mulher passou a ter papéis e
status diferenciados daqueles já cristalizados nas relações de gênero - homem x
mulher - através dos milênios ao longo da extensa história da humanidade no
planeta Terra.
A imagem bíblica da criação da primeira mulher (Eva) a partir da
costela do primeiro
homem (Adão), difundida nas sociedades e culturas de origem cristã,
teria justificado por razões religiosas, até, o papel de submissão, de
dependência, de obediência do sexo frágil ao sexo forte, ao longo de séculos de
predominância da hegemonia cultural européia sob o resto do mundo.
Com a colonização do branco europeu, aqui no Brasil-colônia, a mulher
ocupa posições e status diferenciados de submissão, sem muitas modificações ao
longo dos quatro séculos e, às vezes, condicionados à raça e condição social.
A mulher branca, rica, conta com algumas regalias. É a matriz da
numerosa família
patriarcal, responsável pela manutenção da riqueza e prestígio
familiares, assegurados por casamento sólido e de conveniências, muitas vezes,
acertado pelo pai e sem contato nenhum com o futuro consorte.
A mulher branca e pobre ou a mulher mestiça, quando solteiras, estavam
submissas ao pátrio poder. Casadas, passam a dever obediência ao marido. Sem
voz nem vez.
A mulher índia e a mulher negra, principalmente, são apenas objeto
sexual de quem o branco colonizador tem posse e direito de uso, vida e morte.
Além de mão-de-obra e mercadoria baratas. Sujeitas aos mandos e desmandos do
seu senhor.
Os séculos passam lentamente. E, mais lentamente ainda, os costumes, a
definição de direitos, o usufruir de conquistas históricas, nacional ou
internacionalmente. Necessário que, em l857, 129 mulheres norte-americanas
fossem sacrificadas pelo poder machista, vítimas de incêndio criminoso na
fábrica em que trabalhavam e lutavam por direitos trabalhistas de redução de
carga horária e licença-maternidade, para que se levantasse a bandeira feminina
e feminista. Daquele fato histórico, em 8 de março, ficou o dia internacional
da mulher, comemorado universalmente e sempre usado como ponto de reflexão da
situação da mulher, por seus direitos como cidadãs e profissionais.
Mulheres, borboletas sem crisálidas, vêem chegar o século XX. E nesses
últimos cem anos, quanta coisa aconteceu! Quanta luta, individual e coletiva!
Quanta conquista conseguida! E quanto ainda a conquistar!
Muitas invenções e facilidades, quedas de tabus e preconceitos,
mudanças de valores e de comportamentos foram construindo o perfil da nova
mulher do século XX. Dia-a-dia, década após década.
A mine-saia, a pílula anti-concepcional, o absorvente, o silicone. O
telefone celular, o carro, os eletrodomésticos. O rádio, a televisão, o
computador, a internet. O direito ao voto, ao estudo, ao trabalho remunerado e
fora do lar. A escolha do companheiro, o divórcio, a produção independente de
filho, a desestruturação familiar. As lutas feministas, a emancipação feminina,
os valores modificados...
Apenas alguns exemplos que contribuíram para dar suporte às profundas
modificações de vida da mulher, sexo frágil, ao longo dos últimos cem anos. Com
certeza, ilustram que a mulher jamais será a mesma, nesse tempo histórico de
transição de séculos, de milênios. Nem os papéis e status femininos. E nem as relações
de gênero.
Mulheres, borboletas, sem crisálidas.
Já é possível, então, comemorar neste novo milênio, as conquistas da
mulher?
Não! Porque é a mulher que sofre mais violência no lar, pelos maridos e
companheiros, apesar das leis que garantem seus direitos...
Não! Porque é a mulher que, desempenhando as mesmas funções que o
homem, ganha
menos que o colega profissional...
Não! Porque em sua dupla jornada de trabalho, muitas vezes, não tem a
parceria do companheiro, ficando sob sua responsabilidade, os afazeres
domésticos e os cuidados mais específicos com a educação dos filhos, resquícios
dos tempos de só rainha do lar...
Não! Porque muitas vezes, ainda, é sua inteira responsabilidade não
procriar, abortar ou cuidar, sozinha, da cria, apesar dos tempos da AIDS e da
necessidade vital de prevenção sexual...
Assim, ainda há muito a esclarecer, a conquistar, a definir, a
assegurar direitos, para que as mulheres, borboletas sem crisálidas, possam
viver, com sensibilidade, felicidade e responsabilidades, etapas definidas e
belas de sua especificidade de gênero. Em casa, no trabalho, no Brasil, no
mundo.
Mulheres, borboletas sem crisálidas anseiam por vôos mais altos e
seguros. Vôos que
garantam a perpetuação da própria espécie. Sem traumas. Sem
agressividades. Com
humanidade. Com cidadania.
www.usinadeletras.com.br em 09/03/2002
Reeditando post
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